MUSEU E COLEÇÕES
Um longo e interessante processo de apropriação do tesouro da Catedral, onde pontuava como referência primeira a pintura do mítico Grão Vasco, deu origem ao principal museu da cidade. O decreto que o instituiu, de 16 de Março de 1916, já na sequência de uma série de diligências de âmbito nacional e local com a mesma finalidade, não só prevê a criação de um novo organismo com a designação de Museu de Grão Vasco, como especifica que o seu acervo incluirá “os valiosos quadros existentes na Sé de Viseu (…) o tesouro do cabido da Sé, além doutros objetos de valor artístico ou histórico que possam ser cedidos e se torne conveniente incorporar no mesmo Museu”.
O contexto histórico das reformas republicanas, especialmente o que deriva da lei de Separação do Estado da Igreja, com o consequentemente arrolamento de bens eclesiásticos, configura a uma série de museus, então criados em distintos pontos geográficos do País, um pano de fundo comum. No entanto, será necessário inscrever esse contexto matricial, que aliás, e em rigor, se deverá fazer recuar a 1834, quando se extinguem as ordens religiosas e se assiste ao primeiro grande momento de nacionalização de bens, no plano das realidades concretas que a cada um assistiu. É que, ao contrário do que da determinação acima citada se pode inferir, no caso deste museu, e logo no início, não esteve em causa mais do que um simples processo de transferência de tutela dos bens em questão da Igreja para o Estado. Aspeto que não é de somenos importância se considerarmos que em causa estava a obra do Grão Vasco. Em primeiro lugar, porque as obras e objetos em consideração não só se mantiveram no espaço em que já existiam, isto é, nas dependências anexas da Catedral, designadamente na sala capitular e no piso superior do claustro, com acesso pela porta do templo, como se encontravam já “musealizados”. Em segundo lugar, porque os princípios que orientavam a redefinição da tutela para esses bens patrimoniais – a necessidade de os preservar a partir da consideração do seu valor histórico e artístico – procuravam, e muito especialmente neste caso concreto, legitimar apenas o processo de conversão do património da Igreja em Bens Nacionais.
Na verdade, a simples existência de um tesouro tem já implícita essa dimensão – o reconhecimento de mais-valias aos objetos que o constituem, designadamente artísticas, caso contrário não teriam sido conservados para além do seu uso. Tome-se como exemplo deste processo, nada linear e em si mesmo profundamente complexo, a obra do Grão Vasco.
Quando no séc. XVIII o cabido da Sé encomenda novos retábulos para as capelas laterais da cabeceira da Catedral, em substituição das pinturas de grandes dimensões, do S. Pedro e do Baptismo de Cristo, que ocupavam os altares da catedral de Viseu, iriam juntar-se a outras que em data anterior haviam sido já retiradas dos seus respetivos altares, foram então transferidas para a Sacristia do mesmo espaço catedralício, em cujas paredes se expuseram, com um sentido ornamentativo claramente assumido.
Com rigor, é possível considerar a existência de situações paramuseológicas na Catedral de Viseu, num período longo – pelo menos a partir do séc. XVIII – e que foi assumindo diversos contornos, mas não de um museu de facto.
Com a criação do museu, em 1916, apenas transitaram para outras dependências da mesma Catedral, nas quais se conservavam e expunham ao público os demais objetos, que assim davam corpo a um tesouro catedralício/ acervo museológico.
Francisco de Almeida Moreira, figura tutelar do processo da sua criação desde o primeiro momento, e nomeado seu diretor logo em 1916, lhe preconizava uma existência autónoma, não pode evitar um complexo mas necessário processo de demarcação de territórios. No primeiro roteiro que escreve e edita, logo em 1921, a circunstância do museu se encontrar instalado na Catedral parece não constituir um problema. Estruturado como instrumento de uma visita guiada, propõe uma deambulação pelo templo, sacristia, coro alto e claustro superior, mantendo não apenas estas designações como título, mas incluindo também uma abordagem explicativa quer da arquitetura, quer das várias peças que se inscreviam nesses locais, incluindo os que se mantinham ao culto.
O decreto do Ministério da Instrução Pública, de Junho de 1930, está na origem da partilha do antigo tesouro da Catedral por duas entidades distintas. Esta questão surge no âmbito do pedido de retorno de um vasto património móvel e imóvel à tutela da Igreja. Em 1932, um parecer da Comissão Jurisdicional dos bens cultuais, vem fundamentar, a legitimidade da existência do museu, ainda em parte instalado nas dependências anexas da Catedral, e defender a autonomia desse espaço até que fosse possível dar-lhes «instalação conveniente e definitiva».
Essa instalação, conveniente e definitiva, correspondeu ao Paço dos Três Escalões, contíguo à Catedral, ocupado por diversos serviços públicos à data de criação do museu. Vendo nesse edifício a possibilidade de assegurar a autonomia e dignidade necessárias às coleções, que de modo sistemático, e através de várias frentes, foi criando ou aumentando, Almeida Moreira havia dado início à sua ocupação já em 1923, após obras de remodelação de algumas das suas dependências.
A circunstância do edifício comunicar fisicamente com essas dependências facilitava o processo de articulação das coleções, ou assegurava alguma coerência ao percurso expositivo, como se percebe através do roteiro de 1935. Nesta data, expunham-se no museu “novo” as coleções “novas”, isto é, as mais diversas obras que Almeida Moreira foi incorporando, mas muito especialmente a coleção de pintura portuguesa sua contemporânea. A transferência definitiva do acervo, e com ela a efetiva criação do museu, só foi concluída em 1938 com a transferência da pintura do Grão Vasco e dos objetos do tesouro que com elas se mantinham na Catedral. Almeida Moreira, que viria a falecer em 1939, no ano seguinte ao da conquista da autonomia do museu, deixou constituídas, no essencial, as coleções. Se o papel do fundador e primeiro diretor foi de capital importância, seja pela conquista de um edifício autónomo para o museu, seja pelas importantes coleções que reuniu, foi com Fernando Russell Cortez, diretor de 1955 a 1983, que se reforçaram e valorizaram alguns dos núcleos mais significativos.
Num outro âmbito, seja do ponto de vista das preocupações de natureza conservativa, seja no plano dos critérios expositivos ou de conceções museológicas, designadamente no seu pioneirismo na área dos serviços educativos, o período da sua direção, ainda que injustamente considerando e avaliado em data imediatamente subsequente à da sua saída, revela-se pelas diversas memórias ainda vivas, e pela vasta documentação escrita e fotográfica, o mais inovador e interessante de todo o percurso histórico do museu. O roteiro que escreveu em 1969, é de fundamental importância para avaliar o modo criterioso e dinâmico como valorizou as coleções, que passou a expor fundamentalmente a partir de critérios de valoração estética. Através de aquisições, doações e legados, de âmbito institucional e particular, transformou a coleção de escultura, com a incorporação de exemplares em madeira e calcário dos séculos XIV a XVIII, numa das mais relevantes do museu. Na mesma linha, as coleções de cerâmica e de ourivesaria, que valorizou também do ponto de vista expositivo, foram muito significativamente ampliadas. Já num outro plano, no das museografias, foi também no período de Russel Cortez que se deu corpo a um projeto que, tendo em consideração a época, assume particular interesse. Ao arquiteto José Cid Tudela, conservador-ajudante do museu, coube o “arranjo da secção de escultura”, apresentado no primeiro número da revista Viriatis, de 1957. Trabalhando a partir da consideração de que à reconstituição de ambientes de época e lugar era preferível opor a criação de “fundos neutros, sem qualquer espécie de valorização que distraia do objeto da observação a peça em causa”, não deixou de reconhecer que seria fundamental “não sobrecarregar o ambiente com um número total de peças expostas que ultrapasse os limites de concentração do ambiente”.
Os anos setenta do séc. XX, tanto pelo número de visitantes, quanto pelas muitas considerações valorativas, correspondem de facto aos “anos dourados” do Museu Nacional Grão Vasco. Entre 2001 e 2003, o museu foi objeto de um projeto de intervenção da autoria do Arquiteto Eduardo Souto Moura, que libertou o interior dos muitos elementos apostos e desvirtuantes, e adaptou-o às exigências de um programa museológico novo, graças a uma visão da arquitetura contemporânea, que não apenas restitui ao Grão Vasco o seu brilho, ao expô-lo em permanência com um significativo conjunto de obras, e significativas também por cobrirem vastas áreas do património, como, por outro lado, restitui o pintor à sua cidade e, através dela, ao seu País e à cultura portuguesa.